- 14 de fevereiro de 2023
- Publicado por: CTB-RJ
- Categorias: Mulheres, Notícias CTB-RJ
Passados 8 anos da promulgação da Lei 13.104/2015, conhecida como Lei do Feminicídio, o assassinato de mulheres em situação de violência doméstica e familiar ou em razão do menosprezo ou discriminação à sua condição aumentaram no Brasil. A lei alterou o Código Penal para prever o feminicídio como circunstância qualificadora do crime de homicídio, além de incluí-lo no rol dos crimes hediondos.
O ISP (Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro) começou a compilar e divulgar os dados sobre feminicídios no Estado em 2016. As informações mostram o crescimento dos casos nos últimos anos. Foram 78 mortes em 2020, 85 em 2021 e 97 no último ano (sem computar os dados de dezembro). Quanto às tentativas de feminicídio, foram 270, 264 e 265 em cada ano, respectivamente.
Apenas na favela da Rocinha, foram 2 casos em 29 de dezembro e mais 2 no início de janeiro. Em todo o Estado do Rio, houve pelo menos 4 casos nos primeiros dias de 2023, além de uma tentativa de feminicídio.
A coordenadora executiva da organização Cepia (Cidadania, Estudo, Pesquisa, Informação e Ação), Leila Linhares Barsted, que também integra o Comitê de Peritas do mecanismo de segmento da convenção de Belém (PA) da OEA (Organização dos Estados Americanos), explica que o feminicídio é um fenômeno social grave.
Segundo Barsted, as ocorrências do crime se intensificaram com a pandemia de covid-19, quando vítimas e agressores passaram a conviver por mais tempo. A questão, segundo ela, também reflete o machismo estrutural e os altos índices de violência do país.
“O índice de violência, o incentivo às armas de fogo, esses discursos de ódio, né? Há uma misoginia e um machismo que estão cada vez mais fortes na sociedade brasileira. Ou seja, aquele machismo que se fazia um pouco mais discreto está nas páginas dos jornais, proferido por lideranças das instituições do Estado. Então é como se houvesse uma licença para que homens exercessem o machismo de uma forma mais grave contra as mulheres”, afirmou.
Casos de 2023
No Dossiê Mulher do ISP, que traz dados de 2016 a 2020, os números mostram que a maioria das vítimas de feminicídio é morta pelo companheiro ou ex-companheiro (59%) e dentro de casa (59%). Barsted explica que o feminicídio normalmente envolve uma relação íntima, na qual o homem considera ter posse sobre a mulher.
“Ou seja, é o machismo que não admite que a mulher fuja do controle desse homem. Muitas vezes esses eventos ocorrem exatamente quando as mulheres não querem mais viver em situações de violência e resolvem se separar. Esse machismo se dá exatamente nesse sentido, da ideia de que o homem tem a posse da mulher e quando ele perde a posse, decide então castigá-la.”
Os feminicídios ocorridos no Estado este ano confirmam os dados. Em 1º de janeiro, Stephany Ferreira do Carmo, 25 anos, foi esfaqueada dentro de casa, na Cidade Alta, Zona Norte do Rio, em frente do filho de 7 anos. Ela está internada com quadro estável após ficar em coma induzido e passar por uma cirurgia. O suspeito, Adriano Quirino, com quem a vítima mantinha relacionamento há 1 ano, foi preso. A briga teria sido motivada por ciúmes.
Em 2 de janeiro, Gabriela Silva de Souza, 27 anos, foi esganada até a morte pelo marido, Fábio Araújo da Silva, em Belford Roxo, na Baixada Fluminense. Ele se entregou à polícia. Gabriela havia decidido se separar depois de descobrir uma traição do companheiro.
No mesmo dia, Rosilene Silva, 39 anos, foi atingida por 4 tiros em uma peixaria de Cabo Frio onde trabalhava. Ela já havia denunciado o ex-marido, Thiago Oliveira de Souza, por violência doméstica. Ele foi preso no dia seguinte, na BR-101, em Casimiro de Abreu (RJ).
Em 8 de janeiro, Carmem Dias da Silva, 29 anos, foi morta a facadas e com cortes de vidro, na Rocinha, após uma briga com Wendel Luka da Silva Virgílio, preso em flagrante. Era a 1ª vez que Carmem se encontrava com Wendel, que conheceu pela internet. Ela era sobrinha do pedreiro Amarildo Souza, morto em 2013 após ser levado para averiguações na UPP (Unidade de Polícia Pacificadora) da Rocinha.
Também na Rocinha, Daniela Barros Soares, de 29 anos, levou um tiro na cabeça enquanto dormia, em 9 de janeiro, do ex-marido Rios Loureiro de Souza Sablich, que se entregou à polícia. Rios e Wendel tiveram a prisão em flagrante convertida em preventiva na audiência de custódia em 10 de janeiro.
Enfrentamento à violência
Em sua posse, no dia 1º, o governador Cláudio Castro (PL) afirmou que dará prioridade ao combate à violência contra a mulher e ao feminicídio. Ele citou programas já implementados por sua gestão, como o aplicativo Rede Mulher, o atendimento aos familiares das vítimas do feminicídio, a Patrulha Maria da Penha, a Casa Abrigo e o Ônibus Lilás.
Castro também criou a Secretaria da Mulher, que será comandada por Heloísa Aguiar. A reportagem solicitou entrevista com a secretária, mas ainda não obteve retorno.
Outra área que será fortalecida este ano é a Defensoria Pública do Rio de Janeiro, que elegeu a 1ª mulher no cargo de defensora-geral em 68 anos de história da instituição. Na cerimônia de posse, na 3ª feira (10.jan), Patrícia Cardoso afirmou que trará a perspectiva de gênero e o combate à violência contra a mulher como agendas. Ela também disse que pretende implantar essa visão na defensoria.
“São estatísticas absurdas, as mulheres estão sendo mortas cada vez mais. Esse desafio do enfrentamento da violência contra a mulher, da capacitação dessa mulher para que possa arrumar as malas, como a minha avó fez [a mala] do meu avô, essa capacidade, esse empoderamento, são muito importantes. A Defensoria, junto com o governo do estado, tem papel de destaque e eu queria deixar isso registrado.”
Para Basterd, o fato de ter duas mulheres em posições de poder e decisão deve contribuir para o enfrentamento à violência. Para a advogada, é preciso institucionalizar o diálogo entre as diversas instituições que trabalham nessa área para promover uma rede integrada de proteção à mulher vítima de violência e, assim, prevenir o feminicídio.
“Eu espero sim que a nova secretária possa ter força suficiente e interlocução contínua com os demais poderes e com os movimentos de mulheres. O Conselho Estadual dos Direitos das Mulheres tem uma comissão de segurança da mulher, a Escola de Magistratura do Rio de Janeiro tem um fórum permanente sobre violência contra as mulheres. Então é importante que a nova gestora de política das mulheres possa abrir um canal de interlocução com os movimentos sociais, com as outras organizações do estado, para que a gente possa realmente fortalecer essa política e colocá-la em prática”, disse.
Ela destaca também a necessidade de assegurar um orçamento para a implementação das medidas protetivas previstas na Lei Maria da Penha e a devida fiscalização para verificar se elas estão funcionando, bem como a produção de dados estatísticos sobre o tema.
“Muitas vezes isso fica escrito em grandes documentos, em grandes propostas, mas os recursos orçamentários, a capacitação, o aumento e o fortalecimento das equipes acabam não se concretizando. Sugerimos que os dados sobre medidas protetivas possam ser mais completos. Que tipo de medida, qual o perfil da mulher que recebeu a medida, qual o perfil do agressor, qual a resposta que essa mulher recebeu do Poder Judiciário? Ou seja, são muitas questões que ainda precisam ser preenchidas.”
Transição Federal
No relatório do gabinete de transição do governo federal, o grupo que tratou das políticas para as mulheres apontou a gravidade do problema.
“No 1º semestre de 2022, o Brasil bateu recorde de feminicídios, registrando cerca de 700 casos no período. Em 2021, mais de 66 mil mulheres foram vítimas de estupro; mais de 230 mil brasileiras sofreram agressões físicas por violência doméstica. Os dados são do mais recente Anuário Brasileiro de Segurança Pública. Embora todas as mulheres estejam expostas a essas violências, fica evidente o racismo: as mulheres negras são 67% das vítimas de feminicídios e 89% das vítimas de violência sexual”, destacou o relatório.
Os dados são do estudo Violência contra Meninas e Mulheres, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, que notificou 699 casos no período analisado. O documento foi lançado em dezembro. Nos anos anteriores, o Anuário Brasileiro de Segurança Pública, da mesma instituição, relata 1.229 feminicídios em 2018, 1.330 em 2019, 1.354 em 2020 e 1.341 em 2021. Os dados completos de 2022 ainda não foram divulgados.
O relatório da transição aponta o desmonte das políticas de enfrentamento à violência contra a mulher como causa do agravamento da situação, como a paralisação do Disque 180, que teve apenas R$ 6 milhões no ano de 2023 destinados aos serviços de denúncia, acolhimento e orientação das mulheres vítimas de violência doméstica.
“No caso do programa Mulher Viver Sem Violência, os principais eixos que garantiam a capacidade de execução foram retirados da legislação, desobrigando o Estado de cumpri-los. O orçamento do programa foi desidratado em 90%, e a construção de Casas da Mulher Brasileira foi paralisada.”
A coordenadora da Cepia afirma que toda a rede de proteção foi desmontada nos últimos anos, apesar de o país contar com o Pacto Nacional pelo Enfrentamento à Violência Contra as Mulheres, envolvendo as três esferas de governo, lançado em 2007 e atualizado em 2011.
“O que a gente está vendo é que a rede de atendimento às mulheres, nos últimos anos, tem se enfraquecido cada vez mais. São centros de referência com instalações precárias, são equipes desfeitas, as delegacias, o atendimento na área da saúde, esses serviços públicos têm sido enfraquecidos e muitos desmobilizados no Brasil todo.”
De acordo com Basterd, é urgente uma mudança de mentalidade para tirar o país da barbárie imposta por pensamentos como o machismo, o racismo e a homofobia, bem como o aumento da cultura armamentista.
“Então, são políticas públicas de âmbito nacional, o desarmamento da população, a educação da população para padrões civilizatórios. Nós estamos vivendo padrões de barbárie, com discursos de ódio, uma intolerância imensa, e claro que tudo isso incentiva esses criminosos, esses feminicidas, a praticarem esses atos contra as mulheres. Não se trata apenas de punir agressores, de punir criminosos, se trata sim de reeducar a sociedade para padrões civilizatórios das relações entre os indivíduos.”
Fonte: Poder 360